Sim, o melhor é falar sobre suicídio

Até você terminar de ler este parágrafo, uma pessoa vai ter se suicidado no mundo. Todos os dias, 32 brasileiros tiram a própria vida. Quase 1 milhão de pessoas se matam por ano, uma a cada 40 segundos – são mais vítimas que todas as guerras, homicídios e conflitos civis somados. E, para cada morte por suicídio, existem outras 10 ou 20 pessoas que já tentaram fazer o mesmo.

O Brasil é um país com índices baixos (6 casos por 100 mil habitantes, contra 12 da média mundial), mas vive um momento delicado. Enquanto os índices têm caído na maioria dos países, as taxas brasileiras avançam. Entre 2002 e 2012, o número de casos subiu 34%. Entre adolescentes de 10 a 14 anos, o aumento chegou a 40%, de acordo com o último levantamento do Mapa da Violência.

Talvez você nunca tenha ouvido falar nesses dados desoladores. É porque o suicídio costuma vir acompanhado de um fator que contribui para

o seu alastramento: o silêncio. Não é agradável falar sobre quem se matou ou tentou se matar. Ao mesmo tempo, discutir o assunto – e entender os fatores que levam a ele – são as únicas armas que temos contra o suicídio. Por isso, estamos aqui, falando sobre ele.

Efeito Hannah Baker

“Oi, é a Hannah, Hannah Baker. Não ajuste seu… o que quer que esteja usando para ouvir isso. Sou eu, ao vivo e em estéreo. Sem promessa de retorno, sem bis e, desta vez, sem atender a pedidos. Pegue um lanche. Acomode-se. Porque vou contar a história da minha vida. Mais especificamente, por que minha vida terminou”, diz a protagonista da série 13 Reasons Why. Hannah nasceu no livro Os 13 Porquês, do americano Jay Asher, publicado em 2007, que virou série lançada pela Netflix no final de março. Na história, a menina de 17 anos sofre bullying, ganha o rótulo de “fácil” na escola, é estuprada e acaba isolada dos colegas. Até que decide se matar, e deixar 13 fitas cassetes explicando os motivos que a levaram a isso.

A popularidade da série fez do suicídio um tema obrigatório em escolas e famílias – até porque a incidência entre adolescentes nunca foi tão alta. “Tenho 35 anos de profissão e observo hoje cada vez mais jovens com depressão”, diz o psiquiatra Neury Botega, professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp. “Antes atendíamos pessoas com a doença já na casa dos 40. Hoje atendemos adolescentes deprimidos.”

O Centro de Valorização da Vida, o CVV, principal serviço de apoio psicológico e de prevenção ao suicídio do País, sentiu o efeito imediato da série. Na primeira semana de abril, logo após o lançamento do seriado, a média diária de pedidos de ajuda por e-mail passou de 55 para mais de 300 (um aumento de 445%), muitos mencionando a história de Hannah Baker.  “É positivo ver que, a partir da série, as pessoas estão percebendo que não estão sozinhas, que existe um serviço sigiloso onde elas podem compartilhar suas dores sem serem julgadas”, afirma Carlos Correia, voluntário do CVV há 25 anos, que viu o seriado com seus filhos adolescentes.

Nem todos concordaram com Correia, no entanto. O fato de o seriado ter mostrado explicitamente a morte de Hannah foi muito criticado – e é, inclusive, desaconselhado pela OMS. O medo é do “efeito Werther”. O nome do fenômeno vem do romance Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, cujo protagonista se mata após ser rejeitado pela amada. O tom depressivo do livro, publicado em 1774, provocou uma comoção entre jovens da época, que seguiram o personagem e também se suicidaram.

O fenômeno goethiano é comprovado pela ciência: médicos da Universidade de Viena analisaram 98 casos de suicídio de famosos e perceberam que reportagens sensacionalistas, que glamorizavam a morte de celebridades, estimulavam o “suicídio por imitação”. Em 1962, por exemplo, depois que a imprensa confirmou que Marilyn Monroe havia se matado, o suicídio cresceu 12% nos EUA.

Na mesma época do lançamento de 13 Reasons Why, outro fenômeno jovem chamou atenção para o tema: o jogo Baleia Azul. No desafio, de origem misteriosa e noticiado pela primeira vez na Rússia, um moderador distribui missões mórbidas em um grupo secreto de Facebook – coisas como automutilação, subir no alto de um prédio ou ir a uma estrada de ferro de madrugada. A prova final é acabar com a própria vida. O nome se deve ao comportamento supostamente suicida de baleias que se jogam nas praias, encalham e morrem.

Ainda há dúvidas sobre se o jogo realmente foi criado na Rússia e se virou mesmo uma febre por lá – mas seus efeitos são bem reais por aqui. No início de abril, uma menina de 16 anos foi encontrada sem vida em uma represa no interior do Mato Grosso, com sinais que remetiam ao Baleia Azul: cortes nos braços e pernas – além de uma lista de tarefas com cronograma e regras do desafio. Ainda não existe um número preciso de vítimas no Brasil, mas os Estados de Goiás, Mato Grosso, Bahia, Minas Gerais e Paraná estão investigando mortes de jovens para descobrir se há ligações com a “brincadeira”.

Atenção

Se você ou alguém que você conhece está tendo problemas, comece a ler por aqui.

Reconheça os sinais

  • Frases ou publicações nas redes sociais que falem de solidão, isolamento, culpa, apatia, autodepreciação, desejo de vingança ou hostilidade fora do comum. Coisas como:
  • “Não faço nada direito, sou um lixo”, “Não quero sair da cama nunca mais”, “Mais uma madrugada sem sono”, “Quero que todo mundo se dane”, “Vocês não vão precisar mais se preocupar comigo”
  • Impulsividade: aumentar o uso de álcool ou drogas, mudanças drásticas de peso, dirigir perigosamente
  • Uso frequente de emojis negativos
  • Perguntas sobre métodos letais, como facas, armas ou pílulas
  • Enaltecer e glamorizar a morte
  • Desfazer-se de objetos pessoais e dar adeus

Saúde mental é saúde pública

Por tudo isso, dá para entender a relutância geral em falar sobre o assunto. O problema é que é impossível fugir dele. De acordo com um estudo da Unicamp, 17% das pessoas já pensaram seriamente em pôr fim à própria vida: 4,8% elaboraram algum tipo de plano para cometer suicídio e 2,8% tentaram executá-lo. Quando alguém se suicida, é comum que se procure um grande causador da tragédia: falência, perda de parente, um vídeo íntimo que cai na rede.

Mas esses fatos, sozinhos, não bastam para explicar a morte. “Não são os eventos dolorosos da vida que fazem suicidar. É o efeito incendiário sobre uma condição mental subjacente, frequentemente doente e fragilizada, que faz com que o fato tome a dimensão de tragédia inescapável”, diz a psicóloga e suicidóloga Vivian Zicker, membro da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio (ABEPS) e uma das coordenadoras do Grupo de Apoio a Enlutados por Suicídio da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Imagine que uma bituca de cigarro acesa caia numa grama verde. Ela vai queimar lentamente até se apagar. Mas, se o cigarro cair em um mato seco, pode provocar um pequeno fogo, que talvez vire um incêndio descomunal. Então: as bitucas são os eventos dolorosos da vida. O mato seco é uma condição mental frágil, como depressão, dor crônica, isolamento. Já a grama verde é uma mente saudável e com fatores de proteção – estar empregado, ter criança em casa, ter um companheiro.

De fato, entre todos os fatores de risco, o maior previsor de suicídio é a ocorrência de doenças mentais. Segundo a OMS, 90% das pessoas que se suicidam apresentavam algum desequilíbrio, como depressão, transtorno bipolar, dependência de substâncias e esquizofrenia – e 10% a 15% dos que sofrem de depressão tentam acabar com a vida.

Ainda assim, a OMS defende que 90% dos suicídios poderiam ser evitados. O desafio é cuidar das doenças mentais como cuidamos das outras doenças. Cerca de 60% das pessoas que se suicidam nunca se consultaram com um psicólogo ou psiquiatra. Imagine que estranho seria, por exemplo, se seis entre dez pessoas que quebram uma perna simplesmente não fossem a um ortopedista. Doença mental é apenas mais uma doença – e uma que pode causar o suicídio. Parece óbvio que o assunto deve ser visto como um problema de saúde pública.

“O primeiro passo para a prevenção é falar sobre o suicídio. Ele deveria ser tratado como a aids e o câncer de mama, cujas campanhas de prevenção foram fundamentais para diminuir a incidência das doenças”, diz a psicóloga e coordenadora do Instituto Vita Alere, que faz prevenção ao suicídio, Karen Scavacini. Essa é também a visão da OMS. Em 2013, seus membros se comprometeram a desenvolver estratégias para reduzir a incidência de casos em 10% até 2020.

O Japão é um exemplo de sucesso – e que tem índices historicamente altos. Até o fim dos anos 1990, o suicídio era considerado tabu. Não se deveria discuti-lo publicamente. Até que, em 1998, a incidência de casos cresceu mais de 8 mil em um ano e beirou as 33 mil mortes. A partir desse pico, filhos de vítimas foram à imprensa pedir atenção para o assunto, e o governo decidiu desenvolver medidas de saúde públicas no país, que avaliavam fatores psicológicos, culturais e econômicos.  Deu certo. Apesar de ainda ser alto, o número de japoneses que se suicidam ao ano caiu gradativamente, e em 2012 ficou abaixo dos 30 mil pela primeira vez em 14 anos.

As novíssimas soluções

Na noite do dia 8 de março de 2017, Marcelo*, de 40 anos, iniciou uma transmissão ao vivo em sua página no Facebook dizendo que se mataria em duas horas. Desempregado e prestes a se tornar pai pela quarta vez, essa não era a primeira tentativa do morador da pequena cidade de Caçador, no meio-oeste catarinense, de tirar a própria vida. No entanto, ele não imaginava que seria impedido.

Um amigo de Marcelo notificou o site que ele corria perigo e deu início ao efeito dominó: funcionários do Facebook nos EUA rastrearam o endereço pelo IP do computador, interromperam a transmissão e acionaram a polícia americana, que por sua vez alertou a embaixada brasileira. Imediatamente, a Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina foi informada de que um cidadão estava em risco e avisou as autoridades de Caçador.

O Corpo de Bombeiros, e as polícias civil e militar da cidade conseguiram chegar a tempo. Tudo isso aconteceu em menos de duas horas, na primeira força-tarefa internacional acionada pelo Facebook para evitar que alguém se matasse.

Desde junho do ano passado, a rede social dispõe desse recurso de segurança em que é possível avisar se algum amigo corre perigo. Se você notar que um conhecido publicou conteúdos com tendência ao suicídio ou mutilação, você pode fazer uma denúncia e a pessoa receberá uma mensagem dizendo que um amigo se preocupou com ela. Na mensagem à pessoa em perigo, o Facebook sugere algumas opções, como conversar com alguém ou fazer contato com o CVV.

Para alcançar ainda mais gente, o Face está desenvolvendo também um algoritmo que detecta palavras de risco nos post dos usuários e até nos comentários de amigos. O algoritmo pode disparar o alerta de suicídio mesmo que ninguém faça a denúncia. Em fevereiro, Mark Zuckerberg anunciou que a companhia quer analisar sinais de suicídio também em fotos e vídeos – bullying e assédio são os outros alvos da iniciativa.

A análise de dados é também a solução proposta por pesquisadores de Harvard e da Universidade do Estado da Flórida. No maior estudo já feito sobre suicídio, os especialistas se debruçaram sobre 356 pesquisas, de 1965 a 2014, que continham registros sobre a saúde de mais de 2 milhões de americanos. Dentro dessa gigantesca amostragem, identificaram mais de 3.200 pessoas que tentaram se matar. E constataram: entre as cinco décadas que separam os dados mais antigos da pesquisa dos mais novos, não houve melhora na habilidade de médicos e psicólogos de prever o suicídio. Um fato, no mínimo, preocupante.

A boa-nova está no passo seguinte da pesquisa. A partir dessa imensa base de dados, o time de cientistas desenvolveu uma ferramenta de inteligência artificial que conseguiu prever se alguém vai se suicidar nos próximos dois anos com até 80% de exatidão – muito semelhante aos exames de coração que mostram as chances de desenvolver doenças cardíacas. O sistema é capaz de computar doenças mentais, crises financeiras, históricos familiares de suicídio, discriminação, traumas de infância, stress ou abuso de substâncias – e depois botar todos esses dados para interagir entre si.

Quanto mais próximo o suicídio estiver, mais certeira é a previsão da máquina – e mais eficiente a prevenção. Uma semana antes de alguém tentar se matar, por exemplo, a taxa de acerto sobe para 92% de certeza. “Se mais pesquisadores se concentrarem nisso, finalmente poderemos ver declínios significativos nas taxas de comportamentos suicidas e, em última análise, mortes por suicídio em escala global”, afirmou Jessica Ribeiro, autora da pesquisa, na divulgação dos resultados. Pode ser uma solução para todas essas pessoas que se veem sem solução na vida. E só será possível se não pararmos de falar sobre o assunto.

Ombro amigo

  • Mostre que você se importa, que a pessoa não está sozinha. Ofereça ajuda sem julgar ou dar conselhos: Diga: “estou preocupado com você.  Quer conversar? O que posso fazer para te ajudar?”
  • Não compare sofrimentos: não exija que o seu amigo se sinta alegre por ter menos problemas que outras pessoas. Cada um lida com os sentimentos de forma particular.
  • Pergunte se seu amigo cogita se matar. Se a resposta for “sim”, não entre em pânico. Compartilhar pensamentos suicidas pode aliviar a sensação de isolamento.
  • O melhor caminho é sugerir auxílio profissional. Por exemplo: “tudo bem se não quiser se abrir comigo, quer ajuda para encontrar um psicólogo?”

Em caso de emergência

  • Ao ver uma postagem suspeita, notifique o Facebook e entre em contato com o amigo.
  • Se alguém ameaçar tirar a própria vida, sempre leve a sério: ligue para o 190 ou acompanhe seu amigo pessoalmente até a emergência mais próxima.
  • Depois de uma ameaça de suicídio, entre em contato periodicamente com a pessoa.

Se você está com problemas: Ligue para o CVV pelo número 141 (é 24 horas)

Fonte: Superinteressante – Fotos: Raoni Maddalena e Tainá Ceccato

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.